Capa da Folha de S. Paulo com a revelação de um campo de testes nucleares no Pará (Biblioteca Nacional)

O título do texto até remete àqueles filmes de espionagem sobre o período da Guerra Fria, porém a realidade, muita das vezes, mimetiza a ficção. Ou até mesmo a supera, quando trata-se de Brasil.

Recentemente, o jornal O Estado de S.Paulo veiculou notícia sobre o impasse enfrentado pelo Governo Federal quanto a destinação de aproximadamente 1.200 toneladas de rejeitos radioativos armazenados, surpreendentemente, em velhos galpões localizados no bairro de Interlagos, na zona sul da capital paulista, em uma área residencial – motivo pelo qual o Ministério Público do estado São Paulo solicitou a retirada do material. Diante do embaraço, a estatal responsável pelo lixão radioativo e dona do terreno em Interlagos, manifestou sua intenção em, preferencialmente, enviar as centenas de tonéis de lata para a pequena cidade de Caldas (MG), ou para Itu (SP), onde já mantém depósitos industriais. Só falta combinar com os munícipios, os quais rechaçam totalmente a ideia.

O enredo pode soar familiar aos paraenses com mais de 40 anos de idade. Remonta a um imbróglio do fim década de 1980. Precisamente em agosto de 1986, quando o país ainda vivia a euforia da redemocratização, a Folha de São Paulo revelou, com exclusividade, a existência de covas revestidas de concreto para a realização de testes nucleares em uma Base Aérea localizada na Serra do Cachimbo, região Sul do Pará. Assim, o Programa Nuclear Paralelo brasileiro era revelado. Um dos receptáculos, um poço com cerca de 320 metros de profundidade, já ficara pronto e sua construção teria custado cerca de US$ 5 milhões.

A escolha do local para a realização dos testes teria se baseado em estudos geológicos e hidrológicos da região, desde 1981, que apontaram o local como seguro para a execução da obra. A solicitação de averiguação partiu do Centro Técnico Aeroespacial, administrado pelo extinto Ministério da Aeronáutica. O motivo seria a execução do Acordo nuclear Brasil-Alemanha, assinado em 1975 pelo General-presidente Ernerto Geisel. Além dos testes nucleares, o lugar seria dedicado também para o armazenamento de lixo atômico proveniente da produção de urânio dos reatores instalados em Angra.

Um ano após esta revelação, no dia 13 de setembro de 1987, o instinto curioso e a falta de informação de dois catadores de lixo de Goiânia foram fatores decisivos para o maior acidente radioativo já ocorrido no Brasil, e um dos maiores do mundo. Ao vasculharem as antigas instalações do Instituto Goiano de Radioterapia, no centro da capital goiana, tais homens depararam-se com um aparelho de radioterapia abandonado e tiveram a infeliz ideia de remover a máquina com a ajuda de um carrinho de mão. O incidente resultou em centenas de vítimas, todas contaminadas por meio de radiações emitidas por uma única cápsula que continha a substância césio-137.   

O trabalho de descontaminação dos locais atingidos não foi fácil. A retirada de todo o material contaminado rendeu cerca de 6.000 toneladas de lixo (roupas, utensílios, materiais de construção etc.). E o Governo Federal precisava de um local para depositar todo este material contaminado. A decisão do Planalto caiu como uma verdadeira bomba no nosso querido estado do Pará: os rejeitos radioativos seriam enviados para cá, justamente para as instalações da Base aérea da Serra do Cachimbo.  

A notícia gerou indignação no povo paraense, e pânico na população dos municípios das cercanias. Principalmente em Itaituba, que, pela proximidade do local, temia ser afetada pela radioatividade. O então Governador do Pará, Hélio Gueiros, reagiu energicamente diante da possibilidade do Pará vir a ser destinatário de lixo atômico. Não podia compreender como o estado, tão importante por suas riquezas naturais, responsável por grande parte da produção de mineral, fora escolhido como a “lixeira do país”, ainda por cima no coração da Amazônia. Publicou na imprensa nacional carta aberta direcionada ao Presidente da República, José Sarney, intitulada “O Pará não é lata de lixo do Brasil“. Nela, elencou outros dez possíveis lugares apropriados para o despejo do material. 

Ao mesmo tempo em que deixava que fosse conhecida a sua posição política, o Governo do Pará iniciou um processo de consultas destinado a barrar, na Justiça, a decisão de enviar o lixo atômico de Goiânia. Iniciou-se, então, uma verdadeira queda de braço entre as esferas de governo, com apoio das bancadas paraenses na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional, entidades empresariais, líderes religiosos, católicos e Evangélicos, e entidades de defesa ao meio ambiente – entre elas, a Sociedade para Proteção dos Recursos Naturais e Culturais da Amazônia, liderada pelo ambientalista Camilo Vianna.

A decisão também gerou a reação da sociedade paraense. O Círio de Nazaré daquele ano virou palco de protestos. Sob os olhos de todo o país, centenas de manifestantes adentraram a procissão com cartazes e máscaras 
de protesto e foram progressivamente ganhando apoio dos fiéis, estimulados também pelas declarações das autoridades políticas e religiosas do estado. Romeiros carregavam faixas com os dizeres “Nossa Sra. de Nazaré, livrai-nos do lixo atômico!”. Contudo, mesmo diante da repercussão negativa, as autoridades de Brasília mantiveram o posicionamento de que o local mais apropriado seria aqui.

Na tentativa de contornar a situação, o Planalto enviou o Presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, o físico militar Rex Nazaré Alves, para expor seus argumentos a fim de tentar convencer o governador paraense. Quando perguntado por repórteres que cobriam o Palácio do Governo se iria receber o enviado de Brasília, o governador respondeu: – “O Pará não vai ser destinatário de lixo nenhum e eu não vou perder tempo discutindo com um sujeito com nome de cachorro“. Arrancou escancaradas risadas dos jornalistas.

O ponto mais crítico dessa “Guerra Fria ao Tucupi” foi no dia 14 de Outubro de 1987, quando o comboio de caminhões carregados com os dejetos radioativos largaram de Goiânia, através da Rodovia Santarém-Cuiabá, com destino a Serra do Cachimbo. Ao tomarem conhecimento da situação, cerca de 250 homens armados, acompanhados de milhares de garimpeiros, do município de Itaituba garantiram que iriam impedir a passagem dos caminhões, recorrendo à força, se necessário. Quando indagado pela imprensa sobre a situação, Gueiros disparou: – “Estou aqui para o que der e vier!” E não descartou a possibilidade de, em último recurso, enviar tropas da Polícia Militar para bloquear a estrada.

Felizmente, o então presidente Sarney, na undécima hora, enviou um comunicado por Telex a Belém informando que cancelara o envio dos rejeitos, ordenando o retorno do comboio, e iria abrir um debate nacional para que chegassem a uma solução. O comunicado foi recebido com comemorações por todo o estado, principalmente em Itaituba.

Quando o Governo federal desistiu de enterrar o lixo atômico na Serra do Cachimbo – duas semanas após anunciar que lá era o local ideal – não teve saída, a não ser improvisar em outra direção: foi enviado ao Congresso um projeto segundo o qual cada Estado da Federação seria responsável pelo destino do lixo atômico produzido dentro dos limites de seu território. O Governo, entretanto, estava apenas querendo ganhar tempo. Pois, no momento em que enviou seu projeto apreciação do Congresso, os deputados já discutiam a nova Constituição do País.

Os rejeitos acabaram depositados, atendendo às recomendações do IBAMA e CNEN, no Parque Estadual Telma Ortegal, criado em Goiânia, dentro de uma montanha artificial onde foram colocados no nível do solo, revestida de uma parede de aproximadamente 1 metro de espessura de concreto e chumbo. Por sua vez, o Governo do Estado do Pará sancionou lei proibindo o depósito de qualquer rejeito radioativo em solo paraense.

Quase 20 anos após o imbróglio, em 2005, na série de reportagens do Fantástico “Dossiê Brasília”, sobre Segredos do poder, José Sarney revelou ao repórter Geneton Moraes que, ao ser questionado sobre a real destinação das instalações militares na Serra do Cachimbo, mentiu. Ele confirmou que a estrutura no Sul do Pará, de fato, seria usado para testar a “bomba atômica brasileira”, dentro do Programa Nuclear Paralelo, herdado do governo militar. Na época, no entanto, o Planalto afirmou que o buraco seria usado “meramente” como depósito de lixo atômico, para evitar problemas diplomáticos com países vizinhos. Sarney contou que fora informado da existência do campo de provas na Serra do Cachimbo pelo Conselho de Segurança Nacional. Segundo ele, o objetivo do programa era inserir o Brasil na corrida nuclear.

Ao assumir a Presidência da República, em 1990, Fernando Collor, foi pessoalmente a Serra para inspecionar o fechamento da base, vedando todos os buracos de explosão subterrânea. Simbolicamente, o presidente foi convidado pelos membros da FAB a jogar uma pá de cal sobre o buraco, representando o fim do projeto.