Independência ou Morte, Miséria e Preconceito – Por João Arroyo

Foto: Independência ou Morte, do pintor paraibano Pedro Américo (óleo sobre tela, 1888)

Por João Claudio Tupinambá Arroyo

Neste 7 de setembro, Dia da Independência, olhei pela janela do apartamento e vi meu amigo taxista, do ponto na esquina, sempre tão tímido, de braços erguidos saudando efusivamente a passeata de pessoas que apoiam o presidente. Além da surpresa com a superação da timidez do amigo, fiquei pensando em um ocorrido na universidade particular em que dou aula, quando diante do grande ingresso de alunos com Prouni e Fies, alguns amigos vinham lamentar que tinham que tirar seus filhos para matriculá-los em outra instituição porque, sussurrando, “não posso deixar meu filho na mesma sala de aula do filho do taxista e da secretária lá de casa, você entende, né?”.

É, entendo. A ciência da história registra que a herança cultural de nossa colonização continua reproduzindo relações cruéis que normalizam a miséria e a violência social, colocando a culpa justamente naquele que sofreu empobrecimento exatamente pela concentração de riqueza e poder, começando pela terra. Mais ou menos como colocam a culpa dos estupros das meninas do Marajó, “porque não usam calcinha”, como declarou a ministra da família, Damares. E penso de novo em meu amigo taxista, como se não bastasse a pandemia, a uberização, a gasolina a 7 reais…Impressionante a subjetividade humana, temos muito a aprender.

Então, de que Independência estamos falando? Que Independência precisamos?

Primeiro a Independência de saber, conhecer e pensar. Aqui, já existia este território e diversas nações antes da chegada dos europeus. Antropólogos estimam que a população na calha do Rio Amazonas era de 5 milhões de pessoas. Mas chegaram, declararam o descobrimento, denominaram parte de nossos ancestrais genericamente de índios, invadiram e saquearam as riquezas daqui, a partir dos saberes locais, para levar para enriquecer suas capitais. E de 1500 a 1822 ficamos a mercê de Portugal e Inglaterra, quem aqui vivia perdeu sua independência.

Em 1822, os portugueses daqui, lideraram a “Independência” de Portugal. Independência que só foi reconhecida depois que o Banco da Inglaterra passou para o Brasil uma dívida de 3,1 milhões de Libras Esterlinas que havia sido contraída por Portugal. E veja bem, a dívida contraída pelos portugueses não foi para investimentos sociais populares, parte, nem público era. Mesmo assim acarretou a entrega de mais riquezas: toneladas de ouro, prata, pedras preciosas, madeira, açúcar, café etc., impedindo assim os investimentos necessários ao nosso próprio desenvolvimento socioeconômico. Afinal, que independência tem um endividado?

Em 1888, a Abolição dos Escravos, não foi liderada pelos abolicionistas, como José do Patrocínio, mas por escravocratas sob pressão da Inglaterra, como a Princesa Izabel. Em 1889, a Proclamação da República não foi liderada pelos republicanos, mas por marechais da Guarda Imperial, monarquista, como Floriano Peixoto. Em um processo, denominado pelo historiador Décio Saes como “transições pelo alto”, em que para as elites havia alguma mudança, mas para as camadas populares, que cresceram com a escravidão dos negros que se somaram aos “indígenas”, nada mudava. Mais uma dívida com a Independência.

Desde aquela época, a dívida aceita indevidamente pelas elites que se diziam patriotas, sem qualquer legitimidade por não trazer nenhum benefício à nação. Consolidou uma posição do novo país, como nação subordinada às “Grandes Potências”. A dívida pública e seus juros obrigam a exportar barato. A demanda para exportar incide sobre commodities, divisas baratas como madeira, minério e monoculturas, impedindo a indústria e a tecnologia própria. Importação de produtos com alto valor agregado, aumentando o déficit. Ainda estamos falando de 1822. Com a subordinação à Inglaterra, aceitaram imposições legais que os favorecia, aceitamos a importação de trigo e sua introdução no cardápio popular para substituir a mandioca, que dava suporte à nossa independência. Até hoje importamos trigo.

Quase aos 200 anos da decretação burocrática da independência, a mesma Dívida Pública continua sendo o principal mecanismo financeiro da dominação político-ideológica do país. Dominação que, obviamente, significa a limitação da nossa soberania, pois seguimos reféns de um endividamento público ilegítimo, caracterizado por mecanismos cada vez mais perversos, apoiados pelos setores econômicos nacionais associados aos transnacionais com forte influência sobre o financiamento das campanhas ao parlamento.

A auditora pública, Maria Lúcia Fatorelli, denuncia que “Todo o orçamento público federal é profundamente afetado pelo Sistema da Dívida, que seguiu sendo a prioridade, mesmo em tempos de pandemia”, em que supostamente as prioridades deveriam ter sido as sanitárias.

Fatorelli diz que, “a projeção de gastos com a dívida pública para 2021, já aprovada pelo Congresso Nacional, destina 53% dos recursos do orçamento federal ao pagamento dos gastos com a chamada dívida pública”. Ora, reflitamos, esse pagamento é feito principalmente com recursos arrecadados pelo poder público, os impostos. Acontece que mais de 85% de tudo que é arrecadado com impostos no Brasil, vem de quem ganha até 10 salários mínimos por mês. Os que ganham até 3 SM bancam 53% do que é arrecadado, ou seja, quem sustenta o Brasil são os mais pobres. Logo, quem paga a dívida também são os mais empobrecidos. E quem são os principais credores finais? Abastados acionistas de bancos, fundos e grandes corporações.

Tal como os caninos de Nosferatu, “a elite governante do Brasil(política e econômica) tem, historicamente, se submetido aos ditames do poder financeiro (BIS, FMI, Banco Mundial, bancos privados internacionais) e continua a implementar política econômica contrária aos interesses do país, transferindo fortunas de trilhões aos bancos”.

As estratégias são complexas mas claras. Remuneração da sobra de caixa dos bancos sem limite, Imposição do “ajuste fiscal”, teto de gastos sociais e desmonte do Estado(privatizações, reforma previdenciária, trabalhista e tributária). Independência do Banco Central, embora o Tesouro Nacional continue absorvendo seus prejuízos e financiando suas operações que privilegiam bancos. “Tudo isso para garantir o pagamento de uma chamada dívida que, ao longo da história brasileira, é abarrotada de ilegalidades, ilegitimidades e fraudes” diz Fatorelli. Até o Tribunal de Contas da União já declarou que a dívida interna federal não tem servido para investimentos no país, daí a necessidade de uma Ampla Auditoria da Dívida Pública com ampla participação da Sociedade. Auditoria com técnicos independentes, como aconteceu na Grécia e no Equador.

Na verdade, o processo de colonização não terminou. Mas a nossa responsabilidade enquanto nação é muito maior. No fundo, se trata da negação da Igualdade de oportunidades, enquanto valor. Esta referência que foi a principal bandeira do Liberalismo contra o Estado Absolutista, século XVIII, tem sido negada pela retomada medieval do sentimento de que por origem, ou suposto destino ou missão “divina”, um ser humano é melhor e merece, de ante mão, o melhor, acima do que outros merecem – todos e todas merecem vida digna, esta é a missão da Sociedade, esta é a razão de sermos sócios.

Ora, nem as ciências, nem a teologia baseada no exemplo de vida de Jesus Cristo, dão qualquer provimento à ideia de que uns são mais que outros. A grande conquista civilizatória que tivemos com a Igualdade social e legal, enquanto valor que deve orientar as relações em Sociedade, é a que está no fundamento da Democracia. O Direito tem que ser rigorosamente o mesmo para todos e todas.

A partir daí, o respeito à diversidade e à pluralidade das condições humanas de existência, de gênero, raça etc. No entanto, a condição democrática de, “cada um, um voto”, só é validada onde as informações, condições cognitivas e de aprendizagem, bem como as condições econômicas, não promovam distorções que sustentem relações de dominação e subserviência entre os indivíduos. Portanto, a redução da concentração de riqueza, renda e poder, indissociáveis, é fundamental para a Democracia e a livre independência das pessoas.

Apoiar qualquer governo e se manifestar é, em si, absolutamente normal, legítimo e democrático – desde que não esteja em processo a decomposição da própria Democracia. Reivindicar a volta da Ditadura Militar, o fechamento do STF, o armamento da população, a vigilância dos professores, usar a “força do poder”, a entrega da soberania junto com o petróleo do pré-sal, o ódio aos empobrecidos, os preconceitos etc, não são bandeira que reforçam a democracia.

arroyojc@hotmail.com