Crime e Economia: Quando o que está em jogo é a civilização. Mas, que civilização? – Por João Arroyo

Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Por João Claudio Tupinambá Arroyo

O crime mobiliza aproximadamente 6% do PIB(Produto Interno Bruto – soma de tudo o que produzimos de bens e serviços), um negoção. Para você ter uma ideia, a mineração, hoje bombando, representa 5%. Ou seja, se em 2020 nosso PIB foi de R$ 7,4 trilhões, 440 bilhões foram gastos com segurança pública e privada. Como ninguém gasta com aquilo que tem, na verdade estes números expressam a falta de segurança. E como segurança é um desses bens coletivos que todos temos ou ninguém tem, em média, cada brasileiro e brasileira gasta anualmente quase R$ 2 mil. A cifra dá medida do peso econômico do crime para a Sociedade e indica a magnitude de suas consequências sociais, políticas e econômicas para o país. Entender a dinâmica do crime deve ajudar muito a compreender a dinâmica social, cultural, política e econômica que vivemos e como impacta sobre o futuro que queremos.

Já no sec XVIII, o economista pai do liberalismo econômico, Adam Smith, gastou parte importante de seus esforços em atenção à criminalidade registrando a observação que “o crime e a demanda por proteção eram motivadas pela acumulação de propriedade”(Smith apud Ehrlich, 1996). Outro pensador liberal, Francis Fukuyama(1999) conclui que “o aumento da criminalidade, principalmente aquela ligada à prática de crimes lucrativos, está relacionada às características do processo capitalista e é resultado direto das alterações do comportamento empresarial no período pós industrial”, comportamento lógico de reduzir custos e maximizar o lucro que ultrapassa limites morais e jurídicos colocando-os também no cálculo do custo-benefício. Estabelecendo a lógica moral e cultural do “se paga bem, que mal tem”, e assim, colar na prova, passar o sinal vermelho, sonegar, “não sou traficante sou usuário”, vender uma coisa entregar outra, dirigir a licitação, etc, etc, se colar….colou.

Para a própria corrente liberal neoclássica, o crime lucrativo é uma atividade econômica como qualquer outra, dirigida pela lógica de redução de custos e maximização do lucro. A questão da legalidade é meramente jurídica. Se pagar a multa, ou cumprir a pena, for mais lucrativo, cometer o crime é natural, nesta perspectiva, só a repressão reduz criminalidade. Veja Gary Becker.

Daniel Cerqueira e Waldir Lobão questionam, entender o que leva as pessoas a cometer crimes é uma tarefa árdua. Afinal, não há consenso sobre uma verdade universal. E, ainda que seja uma meia verdade, temporária, que se refira a uma determinada cultura, em um dado momento histórico, como explicar que em uma comunidade onde haja dois irmãos gêmeos, um deles enverede pela via do narcotráfico, ao passo que o outro prefira seguir o caminho da legalidade?

Os estudos sobre as causas da criminalidade têm se desenvolvido em duas direções: naquela das motivações individuais e na dos processos orgânicos de convivência com outros que levariam as pessoas a se tornarem criminosas, até em conflito com sua moral expressa. Tais arcabouços teóricos vêm sendo desenvolvidos, principalmente, a partir de meados do século passado. A Teoria de Campo, de Kurt Lewin, explica que nosso comportamento final é produto de 3 dimensões humanas: a racionalidade, aquilo que percebemos como lógico e justo; a psiquê, ou nosso emocional, que nos oferece a sensação de segurança mesmo em função de fatores subconscientes como nossos traumas; e, nossa afetividade, nosso sentir bem, ou não, diante de algo, também por conta do que não percebemos e que podem até ser contraditório em relação às nossas próprias convicções racionais. Quem, como eu, jura que segunda começa o regime para emagrecer, paga a academia e não vai, sabe bem o que é isso…

Estas 3 dimensões humanas, juntas, definem a relação que os indivíduos tendem estabelecer com o mundo ao seu redor. No plano individual, o processo educativo pelo qual passar e a qualidade do convívio social em que se desenvolver, influenciarão o comportamento a partir de seu conhecimento, talentos, frustrações e dores, incluindo sua constituição neurológica e demais ambientes corporais onde possam desenvolver doenças como a psicopatia, por exemplo. Já na dinâmica do estabelecimento destas condições “pessoais”, que podem afetar coletivos inteiros por renda, acesso à educação, condição racial, de gênero etc, os indivíduos se relacionam com o mundo tendo que interpretá-lo a partir do conhecimento que dispõe, reagindo a partir de como desenvolveu suas capacidades físicas, mentais, emocionais e afetivas, estabelecendo compromissos sociais orgânicos em função da natural busca humana por reconhecimento, acolhimento e valorização(veja a Pirâmide de Maslow), sintonizando com o ambiente que o rodeia.

De acordo com Cano e Soares (2002), é possível distinguir as diversas abordagens sobre as causas do crime em cinco grupos: “a) teorias que tentam explicar o crime em termos de patologia individual; b) teorias centradas no homo economicus, isto é, no crime como uma atividade racional de maximização do lucro; c) teorias que consideram o crime como subproduto de um sistema social perverso ou deficiente; d) teorias que entendem o crime como uma conseqüência da perda de controle e da desorganização social na sociedade moderna; e e) correntes que defendem explicações do crime em função de fatores situacionais ou de oportunidades.”

Tanto um, quanto outro campo teórico, de estudos práticos e explicações, ajudam a entender o questionamento dos gêmeos(acima) ou até como, a mesma pessoa, pode ter um comportamento na feira popular como o Ver-O-Peso, onde jogar papel no chão não preocupa, e outro comportamento no shopping, onde jogar papel no chão “é feio”.

O que os estudiosos observaram na prática da história humana é que quanto maior o envolvimento do cidadão no sistema social, quanto maiores forem os seus elos com a sociedade e maiores os graus de concordância com os valores e normas vigentes, menores são as chances de esse ator se tornar um criminoso. Por isso surgiu a Civilização, entendida como a construção social, coletiva, baseada no estabelecimento de consensos quanto a valores e procedimentos entendidos como justos e corretos, que definem um jeito de viver, uma cultura com sua ordem de poder econômico e político e suas referências de direito.

Quanto mais amplo e representativo o marco moral e jurídico de uma civilização, mais estabilidade ela possui em função de sua capacidade de construir consensos que superem as guerras que marcaram tão dramaticamente a história humana. A medida em que estes marcos se estreitam, os conflitos surgem e se multiplicam em diversas direções. A Teoria da Anomia explica que cada um de nós tem a expectativa de que a Sociedade/Civilização, através de suas instituições e políticas públicas, suprirá as condições e oportunidades necessárias para que você e eu alcancemos o que aprendemos como sucesso. Os que passarem a perceber e sentir que há “diferenças entre suas aspirações individuais e os meios econômicos disponíveis, que as oportunidades estão bloqueadas, ou que há privação relativa a alguma condição do indivíduo por sua raça, gênero, renda etc, a quebra do marco jurídico se torna uma alternativa concreta, tanto mais se houver conexão com seu desenvolvimento individual e seu comprometimento social” (Agnew, 1987; Burton Jr, Cullen, 1992, Burton Jr. et alii, 1994)

Neste ponto, o crime por si só pode conduzir a um simultâneo colapso demográfico e um esgarçamento das estruturas sociais de controle informais, a partir da família e da capacidade de mobilização das comunidades que, por seu turno, levariam a mais crime e, enfim, à desconstituição da Civilização. Lembra de “vender uma coisa e entregar outra”? Sem que se garanta as condições mínimas de dignidade de vida para todos, teremos um motor fabricando gente frágil aos “encantos” da criminalidade o que sempre estará além da capacidade de repressão, apenas servindo de demanda para os negócios de segurança, de câmeras a armas.

Nossa civilização é a Ocidental e temos no Estado Democrático de Direito a referência institucional central. Nesta ordem o Direito deve ser firmado pela Lei, tanto que o princípio previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, sobre a anterioridade da lei penal previsto no artigo 5ª, inciso XXXIX, 1ª parte,3 “não há crime sem lei anterior que o defina(…).” Ou seja, quem define o que é crime somos nós, através do parlamento, aprendemos com nossas experiências históricas e podemos mudar. Não pagar tributo sobre lucro é imoral mas é legal. O crime de adultério deixou de existir, até porque antes, só as mulheres poderiam ser enquadradas nele. Logo, precisamos sempre refletir se o que se estabelece como crime não é apenas uma discriminação, um preconceito ou um jeito de criar um privilégio para poucos.

Por isso, como define Jiménez de Asúa: “Crime é a conduta considerada pelo legislador como contrária a uma norma de cultura reconhecida pelo Estado e lesiva de bens juridicamente protegidos, procedente de um homem imputável que manifesta com sua agressão perigosidade social.” Portanto, o “Crime é uma conduta (ação ou omissão) contrária ao Direito, a que a lei atribui pena.” (Manoel Pedro Pimentel).

Neste sentido, um ponto central é a garantia à todos de acesso à educação, saúde, trabalho, crédito, assistência técnica, canal de mercado, renda, consumo… para uma construção civilizada da racionalidade, da psicologia e afetividade dos indivíduos em Sociedade, constituindo ambientes de convívio cultural, social, econômico pelo Direito e avessos ao crime.

Ao não entregar o que promete, a Civilização se esgarça e se contamina com novas ordens sociais, políticas e econômicas. A lógica do crime lucrativo se instituiu e se profissionalizou. Hoje, temos Organizações Criminosas com mando em territórios e setores, por consequência, conquistaram o controle social: decidem sobre horário de circulação de pessoas, toque de recolher, “tributos de valores agregados”, fechamento de escolas e a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio é letra morta. Pela difusão do medo, essas organizações submetem do cidadão comum às autoridades vulneráveis à vontade das suas ordens e determinações pela força. Nas áreas e setores controlados ou sob influência da delinquência organizada, o cidadão perde garantias e direitos fundamentais, têm de obedecer e não têm dúvida quanto à força da delinquência organizada ser, nessas áreas, superior à do Estado.

Convém destacar, ainda, o peso das organizações criminosas na política. Fica muito fácil, – quando a criminalidade possui controles territorial e social e submissão dos cidadãos pelo medo –, obrigar e exigir que se vote em partidos e candidatos. No início da República o Brasil conviveu, no ambiente rural, com o clientelismo imposto pela oligarquias. Depois, veio a plutocracia e as tentativas de se estancar, por leis, o poder econômico em período eleitoral. Agora, temos um outro componente ainda não levado a sério pelas autoridades, ou seja, a força do crime organizado inclusive em períodos pós eleitorais para dirigir licitações, aplicação de recursos públicos e privados. E isso macula a livre escolha e compromete o sistema democrático representativo.

A civilização corre risco. É preciso repactuar a ordem socioeconômica.

arroyojc@hotmail.com