Coluna Visão Econômica #5: Terraplanismo econômico

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Por João Claudio Tupinambá Arroyo

Há 400 anos, Giordano Bruno(1600) foi o mais conhecido cosmólogo e matemático a concluir e demonstrar que a Terra, pela sua dinâmica em relação ao Sol e outros planetas, não poderia ser plana e que sua forma mais provável era esférica, até pela observação direta dos demais astros. Mas Giordano pagou caro por seu espírito livre e defensor da ciência, foi considerado “herege” e morreu por isso.

Bruno foi mais uma vítima fatal da ignorância institucionalizada. E isto ocorreu quase 100 anos após a circunavegação(volta ao mundo), comandada por Fernão de Magalhães em 1519, e todas as evidências práticas do período das Grandes Navegações, fundamentadas a partir de academias da ciência da navegação como a Escola do Infante de Sagres, em Portugal.

Giordano, como cientista, não estava ligado na política, não se tocava que o Terraplanismo era um dos sustentáculos ideológicos da Igreja que detinha o poder de Estado na Idade Média, não por acaso, também conhecida como Idade das Trevas. Por se sustentar sobre, o que mais tarde ficou conhecido como obscurantismo, a técnica de anunciar “verdades” sem demonstrar sua procedência, ou mesmo, ocorrência de fato. Mesmo com boa parte da população já sabendo, pelas

Grandes Navegações, observações de eclipses etc, que a Terra é redonda, Giordano Bruno foi preso, torturado, manteve sua afirmação científica e, por isso, foi assassinado pelo Estado religioso que governava. Mais uma vítima da “Santa” Inquisição, qualquer relação com fakenews não é mera coincidência, em se tratando do assassinato de reputações. Mas não parou por aí.

Galileu Galilei(1642), foi outro astrônomo e físico que por novos cálculos, chegou às mesmas conclusões de Giordano Bruno e deu outras gigantescas contribuições ao conhecimento humano. Também foi preso, torturado pelo que pensava e demonstrava, mas desta vez o Estado religioso, já desgastado, reduziu a pena à prisão domiciliar perpétua sem que nenhum de seus escritos fossem difundidos. O que, para um cientista, significa a morte. Século e meio após isso, a principal Revolução Burguesa, a Francesa(1789), instalou a República e o Estado Laico(sem confissão religiosa específica, em respeito a todas elas), um grande avanço para a humanidade, baseado em um aprendizado muito sofrido e perdas irreparáveis.

Mas eis que chegamos ao século XXI, e aqui estamos nós, de novo, enfrentando o Terraplanismo, a negação da ciência e a volta do Estado religioso. O que precisamos aprender? Sempre haverá o que aprender. Bem, aqui nesta coluna, vamos trabalhar uma análise a partir do que se observa no campo econômico. Mas as possibilidades de análise são vastas e a psicologia social tem se tornado cada vez mais necessária para entendermos este fenômeno.

A Economia, é uma ciência e, ao mesmo tempo, um fato social. Acontece de diversas formas ao longo do dia. A economia está contida em qualquer relação humana, porque em toda relação humana há troca, de informação, serviço ou objeto que implicam em fluxo da riqueza produzida socialmente. O Dinheiro, como nos diz Yuval Harari em Sapiens, é apenas um mito, uma representação de parte da riqueza que geramos, e nas trocas, fazemos fluir em Sociedade. Aliás, só há riqueza em Sociedade. Ninguém é rico só, isolado. O Valor é uma referência social, coletiva, comunitária.

A princípio, vivemos em Sociedade e, nos submetemos às suas regras, para obter condições que não teríamos sozinhos, objetivando viver melhor. Ora, se vivemos em Sociedade, somos sócios. E, como sócios, temos nossas relações definidas por contrato, a Constituição Federal acima de tudo. E, por todo o conjunto de hábitos, crenças e valores culturais que partilhamos como povo e que orienta nossa conduta, escolhas e juízo de valor e justiça. A este conjunto de regras escritas e não escritas, que organizam as relações em Sociedade e definem os termos das trocas que realizamos no cotidiano, chamamos de sociabilidade.

Acontece que esta sociabilidade pode propiciar relações econômicas, políticas, de raça, gênero etc… justas e socialmente equitativas, ou não. Logo, conhecer e refletir sobre o impacto das leis e outras referências de juízo que adotamos, sobre as nossas relações concretas é fundamental para o fortalecimento de uma sociedade justa e sustentável. Sem cuidar disso, poderemos reproduzir indefinidamente a sociabilidade que temos hoje, capaz de gerar uma desigualdade social e econômica brutal.

Como exemplo, vamos analisar os principais Dogmas Econômicos que o neo Terraplanismo nos trouxe para a pauta sobre nossa sociabilidade econômica e o desenvolvimento do Brasil.

  1. O dogma de que a gestão econômica da nação é igual a administração financeira de uma casa ou família. Este dogma induz aceitar e compreender como correto e justo, que tal como uma família, a nação também é obrigada a “honrar” as suas dívidas, mesmo que tenha que sacrificar as condições de vida básica da maioria de seu povo. Portanto, a nação não pode jamais, gastar mais do que arrecada.
    Acontece que desde a origem da contabilidade entre nações, as dívidas são muitas vezes imposições da nação mais poderosa às nações subordinadas. O caso do trigo foi o mais emblemático, revelado por Celso Furtado. Não foi o “governo” brasileiro que quis comprar trigo e ficou devendo, foram os ingleses que impuseram a importação de trigo para, artificialmente equilibrar a balança comercial a favor do Brasil com tanto ouro, minerais e drogas do sertão levados por eles. Nossa cultura era a mandioca – curioso que até hoje temos política para trigo e grãos e para mandioca muito pouco.
    Os ingleses de então e seus aliados brasileiros trabalharam a introdução do trigo como algo “chique”, importado, para que fosse desejado pelo consumidor brasileiro. E, desqualificaram a mandioca como “coisa de caboco”, coisa de pobre, trabalhando a divisão da nação, inflando a elite para que não tivesse identidade e não desse valor para as coisas daqui. Até hoje, é difícil ver farinha nos restaurantes “chiques”, que não sejam os da cozinha regional.
    Acontece que a gestão econômica de uma nação se dá sobre ativos reais, produção e consumo – devendo ter como objetivo a garantia de vida digna para todos. As famílias administram apenas sua disponibilidade financeira, quer dizer, de dinheiro. Para uma nação, a emissão de dinheiro faz parte da estratégia de fluxo da renda. Em 1929, na Grande Crise, os EUA emitiram moeda sem lastro, para contratar mão de obra, gerar consumo, estimular investimentos privados, geração de empregos, aquecer consumo e colocar toda a economia para girar. Os EUA tem a maior Dívida Pública do planeta. Outros países estabelecem teto é para o pagamento da Dívida, tipo 15%, 20% e pronto.
    A consolidação deste dogma foi a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95, em 2017, que congelou os investimentos públicos em Saúde, Educação, Infraestrutura e outros itens básicos para a qualidade de vida dos brasileiros, mas não congelou o pagamento da Dívida Pública, que ficou liberada para crescer.
    Orçamento Federal Executado (pago) em 2020 = R$ 3,535 TRILHÕES

Inclui gastos do “Orçamento de Guerra” autorizado pela Emenda Constitucional 106/2020

Fonte: CADTM, Fundado na Bélgica a 15 de Março de 1990, o Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo é uma rede internacional constituída por membros e comités locais com sede na Europa, África, América Latina e Ásia
  1. O Dogma de que o corte no gasto social, melhora a economia. Como se pode conferir no gráfico, a Dívida Pública e a Previdência são os dois maiores itens de gasto do gigantesco Orçamento Público brasileiro. Perceba a contradição, enquanto o pagamento da Dívida Pública, em que 90% tem como credores os grandes bancos e corporações, bate em 40% do orçamento, sem nenhuma restrição ou critério, a EC 95 congelou os gastos com Saúde, Educação e Infraestrutura, principalmente e a Previdência, segundo maior item do orçamento, passou por uma reforma que reduziu ainda mais os limitados direitos dos trabalhadores brasileiros, particularmente os aposentados.
    Ora, veja, o congelamento nos investimentos pela EC 95, a redução de acesso a renda pela previdência combinada com a política de corrigir o Salário Mínimo(SM) abaixo da inflação, reduzindo seu poder de compra real, reduz e desaquece fortemente o consumo – motor da economia de marcado. Reduzindo consumo, todas as cadeias econômicas dirigidas ao mercado interno passam a investir menos, com isso produz menos, já que não tem para quem vender e assim diminui postos de trabalho e batemos em 25 milhões vitimados pelo desemprego ou desalento, o que reduz ainda mais os estímulos para investimento. Se lembrarmos que o único fator de produção que gera riqueza, como ensinava Adam Smith, é o trabalho humano, isto é uma tragédia econômica, para a maioria. Mas em economia, a crise nunca é para todo mundo. Esta estrutura econômica favorece, além dos bancos que bateram recorde de lucro de novo, o setor exportador, que ganha com salários baixos dos brasileiros e dólar nas alturas. Com a pandemia, o único setor que se destacou foi o de remédios, comprados aliás com dinheiro público. E assim se explica o perfil dos 20 novos bilionários brasileiros que com o Coronavirus entraram na lista da Forbes.

3. O Dogma de que todos os brasileiros pagam muito imposto. Bem, antes de qualquer coisa, é preciso separar arrecadação de impostos e aplicação de impostos. Nossa carga tributária média é de 34%, está na média mundial. Mas a desigualdade econômica, social e política brasileira faz com que os que ganham até 3 SM sofram um impacto de 60% em sua renda e os que ganham mais de 30 SM tenham um impacto de 28% ou menos. Ou seja, a estrutura tributária brasileira é regressiva, por isso inconstitucional, ilegal. Na constituição, o princípio tributário é o da cobrança proporcional às possibilidades econômicas do contribuinte. Ocorre o inverso, paga mais quem ganha menos. Todos que deveriam saber disso, sabem, menos os que pagam efetivamente. Os que ganham até 3 SM proporcionam mais de 53% do que é arrecadado. Se incluir os que ganham até 10 SM, teremos os que geram 85% de tudo que é efetivamente arrecadado. Quem sustenta o Brasil é quem mais precisa do Brasil, e não tem.

E sobre a aplicação destes mais de 3 trilhões? É mal aplicado? Outra situação em que é preciso definir de que ponto de vista. Ah, o orçamento público não é definido pelo presidente, nem pelo governador ou prefeito, é definido pelo legislativo, vereadores, deputados e senadores…

Chega de Terraplanismo, precisamos arredondar a economia.

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