Foto: Ilustração – Paulo Emmanuel
Por João Claudio Tupinambá Arroyo
A força de fé do Círio de Nazaré, é inquestionável e indescritível. Apenas vivendo um Círio, para além de assistí-lo, é possível compreender e sentir o significado que cabe, a cada um de nós. Um fenômeno religioso, o religare entre ser humano e Deus, Cosmos, que paira acima das igrejas. Uma manifestação popular de identidade, cultura e psiquê coletiva que exige ainda muito esforço de estudo e compreensão para alcançar todas as suas dimensões. No entanto, o mito de Plácido, o caboco que achou a imagem às margens do igarapé Murutucu, onde hoje é o canal da 14 de março, informa uma certeza, o Círio é do povo.
Formalmente, o Círio foi instituído pela Igreja Católica, em 1793, em Belém do Pará, quase 100 anos depois do surgimento da estória de Plácido e o culto popular à Santa. Hoje, é a maior manifestação católica do Brasil – e um dos maiores eventos do mundo -, mobilizando pelo menos, mais de dois milhões de pessoas, principalmente na manhã do segundo domingo de outubro. Em 2004, o Círio foi reconhecido como Patrimônio Cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e, em dezembro de 2013, declarado Patrimônio Cultural Mundial da Humanidade, pela UNESCO. E, não por acaso, na Amazônia.
Esta magnitude única de união popular em torno de uma diversidade de significados e expressões culturais de fé, que a todos e todas inclui, também tem sua dimensão econômica em igual pluralidade de possibilidades e processos, mas todos, ao arrepio da tendência concentradora de renda, riqueza e poder do sistema, distribui a todos a possibilidade real de vida digna a partir da comunhão e igualdade visceral que se realiza na corda, como símbolo e profecia do papel que a cooperação pode realizar em, e entre, nós. Nós, irmãos da família Homo Sapiens, mas ainda nem tão sapiens assim, não é?
Na avaliação do Dieese(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o Círio de 2019, antes da pandemia, injetou na economia paraense algo próximo de 1 bilhão de reais. Em 2020, com o fechamento dos hotéis que paralisou o turismo impactando sobre o comércio e serviços, a redução da injeção econômica foi muito grande, estimamos algo em torno de 50%, porque, mesmo com as corretas medidas sanitárias, o Círio é do Povo e aconteceu. Agora em 2021, com o sucesso da vacinação, que poderia ter vindo antes, os hotéis voltam a receber turistas de outros estados e, as famílias tendem a se sentirem mais seguras para reunirem e demandarem os insumos da cozinha paraense que vem do interior, aproximando a injeção econômica ao que tivemos em 2019.
Em geral, os setores econômicos mais beneficiados serão os de prestação de serviços (como turismo religioso e hotelaria); comércio (com atividade de vendas em geral); indústria e agropecuária, destacando especialmente o aumento do fornecimento de maniva e farinha, do interior para a capital.
Portanto, a economia do Círio, é forte exatamente porque vem “de baixo” e “de dentro”. Tirando o setor da grande hotelaria, importante mas não majoritário, que depende de capital/franquias externas, e que leva para fora o lucro obtido, a maior parte dos negócios que fazem o Círio, além de serem locais, de médio e pequeno porte, estão baseados sobre produtos cujas matérias primas e conhecimentos envolvidos são daqui, do artesanato à gastronomia.
Logo, como em qualquer lugar do mundo, quanto mais a economia movimenta produtos e saberes locais, o capital acumulado(lucro) é reinvestido e gira mais vezes no território, gerando mais valor e assim, mais renda distribui elevando a qualidade de vida das pessoas, a verdadeira riqueza. E este é o caminho para reverter o grave quadro econômico nacional que está em seu menor patamar, vide o PIB e o Consumo das Famílias, desde os tempos da hiperinflação. Mesmo com a política de dólar e preços altos combinada à depressão dos salários, as pessoas reagem e conseguem sobreviver o que, para quem estava no fundo do poço, qualquer soluço é sinal de melhora. Mais um milagre da mãezinha.
Contudo, a demonstração econômica mais evidente do Círio de N. Sra de Nazaré vem do fato de que a principal geradora de riqueza neste período, é sem dúvida, a mandioca. A maniva para a maniçoba, a farinha de tapioca para o açaí, a farinha normal para tudo da mesa paraense, sem mencionar outros derivados. É a mandioca que sustenta milhões de paraenses, milhares de comunidades, empresas e negócios. Mesmo sem política de fomento – que nos impõe a condição de, vez por outra, ter que importar farinha de Santa Catarina, assim como já importamos pato do Canadá – mesmo sem crédito e investimento em pesquisa e assistência técnica rural que merece, mais uma vez a mandioca e o saber local provam a sua força. Imagine quando superarmos a mentalidade colonial, passarmos a valorizar o que é nosso, deixarmos de ter vergonha de pedir farinha em restaurante fino e prepararmos a mandioca para exportar para o mundo e criarmos em Belém a Bolsa de Valores da Farinha… A Bolsa do cacau, que só dá na Amazônia, é em Nova York, entendeu?
A dica já ganhou dimensão internacional. A mandioca foi eleita pela Organização das Nações Unidas (ONU) o alimento do século 21. Além de ser de domínio do saber popular da nação, que obviamente merece ter apoio para melhorar, é um ingrediente versátil nas condições de plantio e na culinária, tendo um papel nutricional importante. Coisa que só agora ficou patente entre nós, já que a versão que aqui, ainda circula, é que a farinha não tem valor nutricional. Sempre tem quem se beneficia com informação fake.
O bravo esforço dos que promovem a Indicação Geográfica de produtos, com apoio do Governo do Estado, tem demonstrado as inimagináveis possibilidades da Farinha de Bragança. Imagine se gerássemos as inovações que as próprias comunidades criam como a farinha saborizada com bacuri. As possibilidades são incontáveis. E só algo assim, “de baixo”, “de dentro”, que exige baixíssimo investimento porque já é de domínio produtivo do conhecimento popular, já está na rotina da população, é que pode alavancar um desenvolvimento justo e sustentável. O Pará se destaca na precarização do trabalho, e apesar de esforços recentes para diminuir esta herança, ainda falta estratégia e um modelo de desenvolvimento adequado.
Se faz sentido a descoberta de Adam Smith, séc XVIII, de que só o trabalho humano gera riqueza, precisamos nos preocupar com o fato de que o Pará é o estado com maior percentual de trabalhadores informais, com 62,4% dos trabalhadores paraenses atuando no mercado informal, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).Em 2019, o Pará era, e isso não mudou, o estado do Brasil com o maior número de trabalhadores autônomos (IBGE). De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), 35,6% da população ocupada do estado trabalha por conta própria. A pesquisa também aponta que o Pará é o terceiro estado do país com maior proporção de trabalhadores sem carteira assinada. O percentual de pessoas nessa condição no Pará é de 47,3%. Apenas o Maranhão (49,7%) e o Piauí (48%) têm índices maiores. Ou seja, o diminuto mercado de trabalho organizado, rebaixa as remunerações, avilta o consumo, estrangula o varejo e, de quebra, induz a desagregação familiar e a violência social, muito em função do ambiente propício às economias ilegais. Mas não são nossos irmãos?
Ainda de acordo com a pesquisa, no primeiro trimestre de 2019, haviam mais de 1,48 milhões de trabalhadores informais no interior do Pará, correspondente a 62,5%. Na região metropolitana de Belém, no mesmo período, foram registrados 551 mil trabalhadores na informalidade, ou seja, cerca de 49,9% da população trabalhadora. Mas a prefeitura de Belém conta com cerca de 8 mil permissionários cadastrados na Secretaria Municipal de Economia (Secon), que atuam regularmente nas feiras, mercados e nas vias públicas. Ou seja, os dados estão muito a quem do necessário para se desenvolver políticas adequadas para reverter estas tendências que destroem a produtividade e a vida digna.
Um detalhe do estudo, realizado por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) e divulgado em fevereiro deste ano, mostra que os índices de trabalho informal no Pará vem crescendo desde 2016. Em 2016, o percentual era de 60,8%, em 2017 subiu para 61,8%, em 2018 apresentou queda para 61,4% e em 2019 fechou o ano em 62,4%. Ano icônico, em 2014 vivemos o pleno emprego, mesmo antes das reformas que iriam gerar emprego – sem consumo, não há o que gere trabalho, que dirá emprego.
A informalidade atinge 40,8% do mercado de trabalho no Brasil em 2021, segundo o IBGE, com mais de 36 milhões de trabalhadores nesta condição. Some-se os 15 milhões de desempregados e os 6 milhões de desalentados, chegaremos aos 50% sem segurança alimentar, em um país que já tinha erradicado a fome, e teremos a visão clara de que o primeiro passo para reverter este quadro é a qualificação do mercado de trabalho a partir da abertura de frentes de investimento intensivas em trabalho, recuperação dos salários, aumento do consumo e da educação para iniciar um novo modelo de desenvolvimento que de acordo com o que demonstramos, precisa ter no centro o desenvolvimento local integral e sustentável. Quem sabe este não será mais um grande milagre do Círio?
Por fim, um outro importante impacto econômico do Círio, não tem a ver com preço, mas com valor. Valor moral. O orgulho de ser paraense nos ajuda a resistir a mentalidade colonial de boa parte dos tomadores de decisão, públicos e privados. A demonstração de igualdade na corda, que sinaliza a força que poderíamos ter se nosso modelo de convívio fosse a cooperação, como entre irmãos. E, a fé de que a mudança é possível e que este é o milagre que nossa mãezinha nos mostra todo ano e que nós precisamos aprender. Salve N.Sra de Nazaré!
PS. Este texto é uma homenagem a João Carlos Pereira. Jornalista, imortal da Academia Paraense de Letras. Marido da querida Emília e meu amigo, com quem partilhamos o vinho e o delicioso coq au vin(frango ao vinho) e a Siricaia(sobremesa portuguesa que eu sempre chamava de sirigaita) que ele preparava para mim. Salve João de Nazaré!
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