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A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), decidiu julgar o estado brasileiro por suspeita de violação aos direitos humanos e omissão na investigação dos “crimes de maio” de 2006, como ficou conhecida a retaliação aos ataques contra a polícia que resultou na morte de civis no estado de São Paulo.
O Brasil tem 60 dias para responder à comissão, via Advocacia Geral da União.
A Ouvidoria da Polícia diz que 493 pessoas morreram na onda de ataques, mas até hoje não há um número oficial de vítimas, que pode variar de 264 a 600.
Há 15 anos, em maio de 2006, São Paulo viveu um dia de medo e caos durante a onda de ataques do crime organizado contra alvos policiais. Bases da polícia, bombeiros, agentes penitenciários e policiais de folga foram atacados em ações orquestradas pelo PCC. O dia 15 de maio de 2006, uma segunda-feira, marcou o ápice da onda de violência iniciada alguns dias antes. Naquele dia, a cidade de São Paulo parou. Nos dias seguintes, uma retaliação aos ataques contra a polícia resultou na morte de civis no estado, a maioria pessoas sem passagem pela polícia.
Mães de vítimas de ataques em Santos entraram com pedido na Procuradoria Geral da República (PGR) da pela morte de 9 jovens por supostos grupos de extermínio. Diante da demora no pedido de federalização, a Defensoria Pública encaminhou a denúncia à OEA em 2015.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sempre afirmou que as mortes foram investigadas corretamente e que “não há como reabrir o caso sem novas provas”.
Na decisão, a Comissão Interamericana fala sobre o fato de o estado não ter solucionado os assassinatos.
“Os elementos trazidos pelas partes indicam que, mais de 15 anos após as mortes, os crimes permanecem sem solução. Sem prejulgar o mérito, há indícios suficientes de que esse transcurso de tempo não encontra justificativa fática ou jurídica. Neste sentido, são ilustrativos tanto os elementos trazidos pela parte peticionária relacionados aos limites das investigações policiais realizadas, quanto à profusão de medidas informadas pelo Estado sem que tivesse sido possível, após tanto tempo, esgotar as linhas investigativas e realizar as diligências necessárias para solucionar os crimes em comento”, diz a decisão.
A comissão diz ainda que quer analisar se houve ou não o uso abusivo da força pública.
“Cumpre à Comissão realizar uma análise prima facie com o único objetivo de determinar se os fatos expostos caracterizam uma possível violação de direitos humanos, bem como se os fatos não resultam manifestamente infundados ou improcedentes. No presente assunto, os fatos expostos cumprem esse requisito. As considerações do Estado sobre se houve uso racional da força pública ou sobre a falta de elementos suficientes para atribuir às mortes a agentes estatais poderão ser examinadas na etapa de mérito e não tem o condão de tornar a petição inadmissível”, diz o documento.
Em resposta à OEA, o governo brasileiro disse que o estado de São Paulo vivenciou uma “crise de segurança pública marcada por rebeliões e ameaças de ataques generalizados a instituições, locais e serviços públicos” feitas por membros da organização criminosa PCC, e que essa crise “conduziu a uma atuação mais efetiva e contundente de órgãos policiais em prol da restauração da segurança e ordem pública”, com a adoção de “medidas de restauração da segurança pública, da ordem pública, bem como da incolumidade das pessoas e do patrimônio”.
O estado brasileiro destacou à comissão que o uso da força pública e o uso racional da força “não contrariam a Convenção de per se, desde que os agentes estatais não ajam de maneira arbitrária”.
Para a defensora pública do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NCDH) Fernanda Balera, “os crimes de maio são emblemáticos da impunidade que caracteriza a violência policial”.
“O caso apresentado pela Defensoria trata da morte de nove vítimas primárias, uma delas uma mulher grávida, que foram sumariamente executadas e cujas mortes não foram investigadas. A decisão da OEA é um marco importante e fruto da luta por verdade e justiça das mães que já dura mais de 15 anos”, disse.
Débora Silva Santos, líder do movimento Mães de Maio, afirmou que se sente esperançosa com a internacionalização do caso.
“Me sinto esperançosa já que a Justiça brasileira e racista tem dois pesos e duas medidas. Houve uma corrupção dos agentes no sistema prisional. Os assassinos dos nossos filhos e os mandantes foram blindados pelo Ministério Público. Pelo corporativismo que exitem dentro da instituição”, afirmou.
Mães de Maio
Desde 2006, o movimento Mães de Maio reúne familiares de vítimas da violência policial no estado de São Paulo. Nenhuma das mães de vítimas recebeu indenização do estado pela morte de seus filhos.
Débora recebeu a notícia da morte do filho de 29 anos no dia 15 de maio. Ela ouviu pelo rádio. “O apresentador falou que tinha vários corpos no IML e começou a dar os nomes e eu parei pra escutar pra ver se eu conhecia alguém. E esse alguém da lista era meu filho. A ficha não cai até hoje.” Débora tem convicção que o filho foi morto pela polícia.
“O toque de recolher foi dado pela PM, através desse telefonema desse policial da família. Ele fala assim: ‘avisa para as pessoas de bem não ficar na rua, porque quem estiver na rua é inimigo da polícia’. E morre teu filho logo em seguida?”
A aposentada Vera Lúcia de Freitas também diz que o caso da morte do filho, o estudante Mateus de Freitas, assassinado por dois homens encapuzados, nunca foi investigado. “A polícia nunca procurou a gente. A única coisa no processo que tinha do meu filho era que investigadores foram até o bairro, tentaram conversar com os moradores e que ninguém sabia de nada.”
Federalização
Em 2016, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, decidiu federalizar a investigação de um dos “crimes de maio”, uma chacina com quatro mortos ocorrida no Parque Bristol, na Zona Sul da capital, no dia 14 de maio de 2006. O caso chegou a ser arquivado pelo Ministério Público de São Paulo pela ausência de provas.