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Crônica de Úrsula Vidal: Carta a André Nunes

Crônica de Úrsula Vidal: Carta a André Nunes

Foto: Divulgação

Te queria reticencias, mas inventaste de ser ponto final. Azar o nosso e da nossa saudade. Quem manda deixarmos de aproveitar cada segundo contigo, com tuas histórias compridas e cheias de detalhes só pescados por tua perspicácia de olhos azuis. Alias, essa palavra – perspicácia – foi inventada pra ti.

Dia desses mergulhei de novo em teu Xingu – livro de contos, causos e crônicas. Me levaste de canoa pelas baixadas de Belém. Legitimo, mesmo, seria eu escrever todinho o texto teu neste espaço. Porque é um abuso meu querer traduzi-lo, reduzi-lo ao pequeno das minhas percepções. Mas, ainda assim, me lançarei.

A Crônica se chama ‘Baixadas de Belém”. Traçaste a cidade como um mapa onde há cheiro, jeito de falar e identidades marcadas por procedência e extrato social. Me ensinaste – como, aliás, sempre fizeste, essa era tua missão primeira na minha vida – que Belém foi sendo ocupada “ou por esbulho, ou por empréstimo”. Gente mais abastada se fixando na terra alta que não alagava e gente cabana, vinda dos tantos interiores do Baixo Tocantins e Marajó se assentando na várzea, onde a maré dá e tira, traz e leva. Povo já acostumado com o balé diário das águas e com a tecnologia cabocla da ribeira, se acomodando – gente, bicho e tralhas – em palafitas.

E Belém foi crescendo. Em gente e problemas. Pedaços imensos da capital – tudo terra firme que pouco alagava – foram sendo afetados para empresas de operação portuária, estaleiros, famílias influentes, para as Forças Armadas, Universidades Federais. E o povo mais pobre se viu empurrado da várzea para as partes ainda mais vulneráveis da pele encharcada de Belém. Aterro feito de caroço de açaí, de lixo e de restos de construção foram mudando a feição do alagado. E onde tem lixo, tem chorume. Onde tem chorume, tem podridão e doença. O povo foi se acostumando. E não há nada pior do que se acostumar com a indignidade.

Pra completar o cenário feio, sujo e estigmatizante, os igarapés e canais por onde circulavam as canoas e as águas da maré – que não está nem aí pra nossa explosão demográfica – foram virando monstruosos esgotos a céu aberto. Um céu que chove seu toró diário e alaga Belém, cidade tão abundante e viva que decidiu brigar com o rio. Decidiu brigar sua gente. O que era córrego feito de margem, leito e água, recebeu toneladas de concreto. Virou canal, que agora recebe nossos excrementos diários sem tratamento algum. E quando chove forte… Bem, cada um de nós sabe o que há naquele transbordamento fétido e pútrido onde há gente se aventurando a pé, de bike, de canoa, de moto e, quando a vida dá bom tempo, encarando de carro. Como disseste, André: não precisa ser assim. Temos inteligência, tecnologia e experiência acumulada suficientes para tirar Belém desta sina de se afogar nos erros do passado.

Úrsula Vidal é jornalista e Secretária de Cultura do Pará