Bolsonaro cita IgG alto para não tomar vacina; médicos e Anvisa listam razões para não repetir erro do presidente

Foto: Carla Carniel/Reuters

Em uma nova afirmação desprovida de base científica, o presidente Jair Bolsonaro disse que decidiu não se vacinar contra a Covid-19 porque mantém altos índices de um tipo de anticorpo contra a doença, chamado de IgG.

“No tocante à vacina, eu decidi não tomar mais. (…) A minha imunização está lá em cima, IgG está 991. Para que eu vou tomar uma vacina?”, questionou Bolsonaro.

Abaixo, em cinco tópicos, veja o posicionamento de médicos e entidades sobre o argumento de Bolsonaro e por que eles afirmam que é um erro considerar o IgG isoladamente como sinal de imunidade contra a Covid.

1 – O que é o IgG e como o corpo se defende?

Na sigla IgG, o Ig significa imunoglobulina. A imunoglobulina é um tipo de anticorpo produzido pelo sistema imunológico contra um agente invasor. IgG, então, é uma imonuglobulina da classe G.

O primeiro ponto a ser considerado é que IgG não é um conceito que sozinho abrange toda a “imunização” como a fala de Bolsonaro dá a entender.

Explicando de outro modo, segundo o professor de doenças infecciosas e vacinas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Oscar Bruna-Romero, o IgG sozinho não representa toda a defesa que o corpo precisa para agir contra o vírus.

“O IgG é a imunoglobulinado tipo G, que é o anticorpo que se comporta como memória imunológica mais frequentemente, ou seja, o anticorpo que fica por longos períodos em nós. Esse anticorpo é produzido em resposta a uma infecção, porém não quer dizer que ele funcione neutralizando o vírus”, explica Bruna-Romero.

O corpo humano tem dois tipos de respostas imunológicas:

  • humoral: inclui linfócitos B, produção de imunoglobulinas (Igs) de quatro classes (IgM, IgG, IgA e IgE)
  • celular: dependente de linfócitos T, que podem ser do tipo CD4 e CD8.

Os anticorpos fazem parte da resposta humoral, a primeira resposta do corpo ao receber um imunizante ou quando entramos em contato com um vírus.

A presença do IgG nos testes indica se houve contato com o vírus. No caso dos testes rápidos de farmácia, também pode indicar em que estágio da doença a pessoa infectada se encontra – no início ou já no final da infecção.

Entretanto, a principal resposta contra a replicação do coronavírus na célula é dada pelos anticorpos neutralizantes, conhecidos pela sigla nAb. No caso da Covid-19, os nAB atuam em uma parte bem específica do vírus e impedem a entrada dele na célula-alvo.

Por sua vez, os anticorpos IgG podem agir de forma menos específica contra o Sars-Cov-2 e não impedir sua replicação. Por isso, eles podem ser bons sinais se uma pessoa já teve Covid, mas não necessariamente uma pessoa com IgG alto tem bons níveis de anticorpos neutralizantes.

Por isso, os testes sorológicos não são capazes de analisar toda a resposta do corpo. Vale apontar ainda que as células de memória não são avaliadas nesses testes. Assim sendo, medir o IgG pode revelar apenas uma pequena parte de um processo muito maior que é a formação da imunidade contra o vírus como um todo.https://db082dc0fd68e0b26f9cd9ad0856c395.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html

2 – Bolsonaro diz que o seu IgG ‘está 991’. O que isso significa?

Ter um IgG alto não é sinônimo de proteção contra a Covid-19, segundo especialistas ouvidos pelo g1.

“Se o presidente tem IgG de 991, não quer dizer que ele está protegido contra a Covid, mas apenas significa que ele tem uma resposta imunológica. Para saber se ele está protegido teria que ter uma quantidade de anticorpos neutralizantes muito alta. Pode ser que tenha, pode ser que não tenha. Aí ele tem que falar qual foi esse teste que ele fez”, aponta Bruna-Romero.

“Dizer que se tem nível x ou y de IgG não significa nada. Ainda não temos um correlato de proteção, ou seja, ainda não sabemos qual o nível de anticorpos se correlaciona ou não com estar protegido contra a Covid-19”, explica o infectologista e diretor da Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm), Renato Kfouri.

Além disso, de acordo com o presidente do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), João Viola, a IgG age especificamente em uma parte do coronavírus – como a proteína S, por exemplo -, mas não age em todo o vírus, não sendo capaz de neutralizá-lo.

“Para avaliar a proteção devemos analisar se as Igs produzidas são neutralizantes para o vírus, o que normalmente não é avaliado na rotina de dosagem da Igs”, diz João Viola.

“A IgG mostra uma resposta humoral importante, mas devemos avaliar não somente ela, mas também a IgA, que são importantes para imunidade de mucosas. Mas além disso, devemos avaliar a reposta imune celular dependente de linfócitos T CD8”, completa o presidente da SBI.

Viola destaca que já foi comprovado que indivíduos com baixos títulos de IgG podem ter uma boa resposta anti-Covid, pois estas pessoas têm uma boa resposta celular. “E o contrario também é verdadeiro, pois indivíduos com títulos altos de IgG podem ter uma resposta não eficiente, pois falham na resposta celular”, explica o infectologista.

3 – Há valores de referência para atestar que uma pessoa está com anticorpos suficientes para se dizer imune?

Todos os especialistas ouvidos pelo g1 afirmam que, ao contrário do argumento de Bolsonaro, a ciência ainda não encontrou um valor de referência que seja capaz de determinar se um indivíduo está imunizado contra o coronavírus de maneira eficiente.

“Não temos valores de referência. Apesar de os altos títulos de Igs serem importantes, mais importante do que os valores é saber a classe de anticorpos, incluindo IgG (Igs de memória imunológica) e IgA, que são Igs que protegem mucosas, nesse caso importante para protegerem do coronavírus, pois esse é um vírus que infecta (contato) pela mucosa de vias aéreas superiores”, explica Viola.

Kfouri acrescenta mais um ponto nessa discussão: o nível de anticorpos necessários para a imunização pode variar de pessoa para pessoa.

“A gente vem estudando qual era o nível de anticorpos dos indivíduos que tiveram Covid mesmo vacinados para tentar estabelecer um nível de corte correlato de proteção, mas esse nível depende de vários fatores como condição do indivíduo, idade etc”, afirma o presidente da SBIm.

4 – Qual a recomendação da Anvisa sobre medição de IgG?

Na nota técnica 33/2021, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alertou que os testes para diagnóstico de Covid-19 disponíveis no mercado não devem ser utilizados para atestar o nível de proteção contra o novo coronavírus. No caso, a recomendação surgiu diante da busca de pessoas que tinham se vacinado e queriam saber se a “vacina pegou”.

“Não existe, até o momento, a definição da quantidade mínima de anticorpos neutralizantes – que evitam a entrada e a replicação do vírus nas células – para conferir proteção imunológica contra a infecção, reinfecção, formas graves da doença e novas variantes de Sars-CoV-2 em circulação”, explicou a Anvisa.

“A Agência reforça, ainda, que não há embasamento científico que correlacione a presença de anticorpos contra o Sars-Cov-2 no organismo e a proteção à reinfecção.” – Anvisa

5 – Por que mesmo quem já pegou Covid deve se vacinar?

O presidente do comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), João Viola, lembra que a vacina tem uma composição testada para levar uma quantidade ideal do material que fará o corpo se preparar para lutar contra o vírus. Além disso, as diferentes doses e o reforço promovem uma resposta mais consistente e eficaz contra a Covid quando comparada com a infecção viral.

A diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação do Butantan, Ana Marisa Chudzinski, lembra que “as vacinas não induzem um único tipo de resposta”. A resposta imunológica gerada pela vacina pode manter uma espécie de lembrança que guarda na “memória” dados do patógeno contra o qual o corpo já entrou em contato.

É a partir dessa “recordação” que o corpo consegue gerar anticorpos se o vírus ou bactéria aparecer novamente no futuro. “Se mais tarde você tiver contato com o organismo patogênico, o seu corpo vai responder e te defender”, completa Ana Marisa.

“Dosar se eu tenho 1, 10, 50, 100% de anticorpos não é conclusivo para dizer se uma pessoa está imunizada ou não. O número de anticorpos vai cair, mas é a memória que interessa”, diz Ana Marisa.

Por Laís Modelli e Mariana Garcia, g1